segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Cai um corpo no meio da mesa
Suspendo a fome e a vontade de ter
Devoro com palavras o silêncio do instante
Sem saber se era pra revelar ou esconder
Ardiloso tempo que me come por trás
Sem dar chance de me defender
Corre escondido as horas do nunca mais
E reconheço a vida que nunca vou ter
No estreito instante em que revejo o caminho
Pálida angústia de palavra e espinho
Ardiloso tempo que me come por trás
Sem dar chance de me defender
Corre escondido as horas do nunca mais
E reconheço a vida que nunca vou ter.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

carnaval




Apanho fitas no ar
Sorrisos na boca do outro que passa; minto ser meu.
Pego emprestado a falsa alegria do folião distraído.
Que sons insistem em se desprender da avenida
e impregnar o nosso ar
Carnaval é de quem ?
Sou eu quem desfilo as minhas roupas
e aceno a quem passa.
A morena que beija,
o rapaz que festeja,
o vestido da vedete,
São três mesmas cenas
de um velho caderno de histórias
que todo ano se repetem.
Gosto de dizer.
Direi melhor: gosto de PALAVRAR.
As palavras são para mim
Corpos tocáveis,
Sereias visíveis,
Sensualidades incorporadas.
Fernando Pessoa
Para a despedida do ano velho e daquele que cheira a novo.
VAI, ANO VELHO
Vai, ano velho, vai de vez
Vai com tuas dívidas e dúvidas
Vai, dobra a esquina da sorte, e no trinta e um,
A meia-noite esgota o copo
A culpa do que nem lembro
E me cravou entre janeiro e dezembro.
Vai, leva tudo: destroços, ossos,
Fotos dos ausentes, beijos de atrizes,
Enchentes, secas, suspiros, jornais...
VADE RETRUM, vai pra trás!
Leva pra escuridão quem me assaltou
O carro, a casa e o coração,
Não quero te ver mais, só daqui a anos,
Nos anais, nas fotos do nunca-mais.
Vem, ano novo, vem veloz,
Vem em quadrias, aladas, antigas
ou jatos de luz modernas, vem,
paira, desce, habita em nós,
tenho pressa de novidade, do que ainda estar por vir,
Vem com cavalhadas, folias, reisados, rezas,
bençãos e mandingas, fitas multicores, rabecas,
vem com uva e mel, e desperta em nosso corpo a alegria.
Escancara a alma, a poesia, e por um instante,
estanca o verso real, perverso
e sacia em nós a fome de utopia.
Vem na areia da ampulheta, no tempo que corre,
estando em nós, ausentes ou presentes
como uma semente que contivesse outra semente
ou do umbigo da gente como um ovo.
O sol, a gema do ano novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.
Adeus, tristeza: não te quero mais,
Até nunca mais!
A vida é uma caixa chinesa de onde brota a manhã.
Agora é recomeçar.
A realidade é urgente.
Entre flores e sementes
é permitido sonhar.


NEM TODA PALAVRA FALA
NEM TODO SILÊNCIO CALA
NEM TODA BALA É FATAL
NEM TODO RIO TRANSBORDA
NEM TODO PARTIDO É HORDA
NEM TODOS ROEM A CORDA
NEM TODO TUDO É TOTAL.
Os três mal amados
Joaquim:
O amor comeu meu nome,
minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevia meu nome.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa.
Bebeu a água dos copos e das quartinhas.
Comeu o pão de propósito escondido.
Bebeu as lágrimas dos olhos que, ningém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis
onde irrefletidamente
eu tornara a escrever meu nome.
O amor comeu minha paz e minha guerra
Meu dia e minha noite
meu inverno e meu verão,
comeu meu silêncio,
minha dor de cabeça,
meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto